Eu nunca esqueço aquela audiência. O réu, um rapaz de pouco mais de vinte anos, entrou algemado, cabeça baixa, o olhar perdido. Do outro lado, a família da vítima se encontrava indignada, faminta por justiça. E no meio de tudo isso, o silêncio. O tipo de silêncio que fala mais do que qualquer palavra.
O juiz perguntou se ele queria se manifestar. Ele olhou pra mim por alguns segundos, como se buscasse permissão, e respondeu apenas: “Prefiro ficar em silêncio.”
Foi ali que eu entendi o peso de uma frase simples para quem vive à margem do sistema penal. Muita gente acha que o silêncio é culpa. Mas quem está há anos dentro de salas de audiência criminais sabe: o silêncio, na maioria das vezes, é medo. Medo de ser julgado antes de ser ouvido. Medo de falar a verdade e ser desacreditado. Medo de que nada do que ele disser vá importar.
Na advocacia criminal, o réu raramente começa do zero. Ele começa de menos dez. Antes mesmo de o juiz abrir o processo, a sociedade já decretou sua sentença. A manchete já o condenou, os comentários nas redes já o crucificaram e a opinião pública já decidiu que o advogado que o defende “é igual a ele”.
Mas a justiça não é um tribunal de likes. E o advogado criminalista não é cúmplice, é ponte. Ponte entre o que se vê e o que se esconde. Entre o direito de punir e o dever de compreender. Entre o ódio e a humanidade.
O papel de quem defende é solitário, corajoso e, muitas vezes, incompreendido. Ser criminalista é ter estômago para ouvir histórias que ninguém quer ouvir e firmeza para sustentar teses que poucos têm coragem de defender.
O silêncio do acusado é, na verdade, um grito sufocado. É o reflexo de uma sociedade que não escuta, apenas reage. E é nesse vácuo que a injustiça cresce. Já vi inocentes condenados porque não sabiam “se defender bem”. Já vi culpados sendo tratados como monstros sem chance de recomeço. E, entre um extremo e outro, o silêncio — sempre o silêncio — tentando sobreviver a um sistema que fala muito, mas ouve pouco.
Quando o acusado se cala, ele não está negando a verdade. Ele está protegendo a pouca dignidade que ainda resta. O silêncio é, às vezes, o último escudo contra um julgamento que já começou antes mesmo de ele abrir a boca.
Defender não é concordar. Defender é garantir que, mesmo o pior dos homens, tenha direito a ser ouvido com justiça, com dignidade. Porque se um dia a defesa for negada a ele, amanhã será negada a você.
A sociedade precisa entender que a advocacia criminal não é feita de vilões e mocinhos, é feita de gente. Gente que erra, que sofre, que chora, que tenta recomeçar.
Advogar no criminal é conviver com o abismo todos os dias e continuar acreditando que a justiça é possível. Mesmo quando ela parece distante. Mesmo quando ela parece cega. Mesmo quando tudo pede pra desistir.
A verdadeira justiça não é feita no barulho das redes, nem no alarde da opinião pública. Ela acontece no silêncio das madrugadas em que o advogado estuda cada detalhe do processo, buscando uma brecha para salvar uma vida que ninguém mais quer ouvir.
Talvez o silêncio do acusado não seja ausência de fala, mas seja presença de dor. E é por isso que, antes de julgar, é preciso ouvir. E antes de condenar, é preciso entender. Por isto é tão importante a presença de um advogado criminalista.
Porque, no fim, o que separa a barbárie da civilização é a capacidade de escutar o outro mesmo quando ele escolhe o silêncio.
Núbia Citty
Advogada Criminalista e Mentora de Advogados de Coragem