Há alguns anos, eu entrei em um presídio e vi uma cena que nunca esqueci: Um corredor longo, abafado, com cheiro de ferro e suor. Marmitas sujas jogadas no chão. Homens deitados em papelão. Banheiros sem privada. O chuveiro era garrafa pet de refrigerante furada.
De um lado, uma fileira de homens algemados. Do outro, o eco do silêncio e dor.
Ali, percebi o que a teoria chama de “seletividade penal”.
Mas não era um conceito. Era um padrão.
Quase todos eram jovens. Quase todos eram negros. Quase todos presos por tráfico de drogas. Quase todos presos por buscarem uma vida mais fácil. Quase todos vinham das mesmas ruas que o Estado só lembra que existem quando chega a viatura.
E o mais chocante? Nenhum deles tinha um sobrenome que abrisse portas.
E não é coincidência. Não é somente na cadeia que eu visitei.
A Justiça deveria ser cega, mas no Brasil ela tem visão seletiva. Ela enxerga a cor, o CEP, o status, o advogado.
Ela enxerga a quem ela pode punir sem medo de repercussão.
E fecha os olhos quando o réu tem poder, dinheiro ou sobrenome.
A seletividade penal é o modo mais disfarçado e também mais cruel de desigualdade. É o braço armado do preconceito institucionalizado. Porque o sistema não pune todos: ele escolhe quem vai ser o exemplo. E o exemplo é sempre o mesmo: o pobre. O preto. O periférico.
Enquanto isso, o empresário que fraudou milhões discute sua liberdade em casa, com vinho caro e advogado de plantão. Na verdade discute quanto será necessário pagar para que nada o atinja. E consegue.
E no meio deste caos é que eu entro. Ser advogado criminalista é estar no olho do furacão. É acordar todos os dias para lutar contra um sistema que já acordou com o veredito pronto. Condenação para quem não teve chance. É defender o direito de defesa em um país que idolatra o “prende e arrebenta”.
Nós não defendemos o crime, defendemos o Direito. Esta frase já deveria estar decorada por todos. Porque o discurso popular quer sangue, quer culpado, quer manchete. A mídia já determinou quem deve morrer nas celas.
Mas o papel do criminalista é justamente o contrário: é esfriar a emoção e exigir prova, contraditório, técnica e limites.
Quando o povo grita “bandido bom é bandido morto”, é o advogado criminalista que lembra que ninguém — absolutamente ninguém — deve ser morto sem processo, sem defesa, sem verdade.
E ainda assim, ouvimos todos os dias: “é uma profissão podre”; “eu faria tudo, menos defender bandido”; “Mas como você consegue defender alguém assim?”
A resposta é simples e brutal: porque alguém precisa defender o Direito, mesmo quando é impopular. Alguém precisa dar a segunda chance para quem nem sequer teve a primeira. É necessário enxergar a humanidade enquanto as pessoas enxergam monstros. É so para pedir RESPEITEM AS REGRAS DO JOGO PARA TODOS!
Mas óbvio, há momentos em que é difícil. Há dias em que você sai de uma audiência e sente o corpo inteiro cansado, não de lutar contra o crime, mas contra o sistema, e contra vocês que são tão ignorantes, que ainda usam do preconceito disfarçado de moral. Contra o ódio travestido de justiça.
O sistema penal brasileiro não foi feito para resolver problemas — foi feito para administrar corpos incômodos. Ele não reintegra. Ele descarta.
E o advogado criminalista é, muitas vezes, a única resistência entre a máquina e o indivíduo. A voz que diz “calma, vamos analisar”, quando todos gritam “culpa, mata logo”. Somos o freio que impede o Estado de atropelar direitos em nome da mídia.
O criminalista é o inimigo preferido de quem não entende o Direito. Porque é mais fácil atacar o advogado do que enfrentar o fato de que o sistema é seletivo, preconceituoso e excludente.
Mas o que poucos entendem é que defender um réu é proteger o futuro de todos.
Porque o dia em que aceitarmos condenar alguém sem prova, o próximo pode ser inocente ou pode ser você. Sim, você pode ser preso um dia meu caro.
A democracia não é testada quando defendemos os inocentes. Ela é testada quando temos coragem de defender os culpados, porque até eles têm direitos. E continuo gritando: RESPEITE AS REGRAS DO JOGO PARA TODOS!
O advogado criminalista é o guardião invisível dessa fronteira. Sem ele, o processo vira espetáculo. A justiça vira vingança.
E o Estado volta a ser o algoz de sempre.
Enquanto a sociedade quiser sangue, o criminalista vai continuar exigindo prova.
E é por isso que a advocacia criminal é, antes de tudo, um ato de coragem.
Núbia Citty – Advogada Criminalista, Empresária e Mentora de Advogados
Instagram: @nubiacitty 💬 “Enquanto a sociedade quiser sangue, eu continuarei exigindo provas.”


